A CRIANÇA SUJA DE SANGUE
Esta reportagem mostra histórias reais de violação de direitos humanos protagonizadas - com dor - por filhos de mulheres vítimas de feminicídio no Brasil. Imagens, descrições e depoimentos contidos nos textos podem ser considerados perturbadores.
Renata Moura
Repórter | jor.renata.moura@gmail.com
14 de março de 2021
Nos últimos cinco anos, pelo menos 6 mil mulheres e meninas foram registradas no Brasil como vítimas de feminicídio, um tipo de homicídio que arrasa famílias inteiras, com efeitos ignorados – que se multiplicam no país – entre os filhos que ficam.
É essa história que “A criança suja de sangue”, fruto de quase dois anos de investigação, conta. A reportagem é uma adaptação em português com trechos inéditos da dissertação “We saw, we saw dad killing mom. And we were left here with nothing” (Nós vimos, nós vimos meu pai matar a minha mãe e ficamos aqui sem nada), apresentada pela jornalista Renata Moura para conclusão do mestrado em Investigative Reporting da Birkbeck University of London, Universidade baseada no Reino Unido.
O trabalho busca respostas sobre os impactos dos feminicídios e revela, como resultado, danos psicológicos, sociais e emocionais que se arrastam por décadas para meninos e meninas, parte deles testemunhas dos crimes, com o corpo marcado pelo sangue da mãe.
A inação do Estado nesse campo, mostram dados obtidos via Lei de Acesso à Informação e especialistas, pode estar contribuindo para “o adoecimento de gerações” e para alimentar um ciclo de violência sem fim.
Apenas em São Paulo, cerca de 22% dos presos por feminicídio em um complexo de cadeias afirmam que cresceram em lares também violentos e que viram as mães serem espancadas ou assassinadas. Impulsionados ou não por outros determinantes da criminalidade, antes de reproduzirem a barbárie contra mulheres, companheiras, filhas, irmãs, e conhecidas quando ficaram adultos, parte deles já havia sido presa por roubo, furto, tráfico de drogas, lesão corporal, ameaça e Lei Maria da Penha, por exemplo.
O texto publicado neste domingo (13) pela TRIBUNA DO NORTE - na semana em que a Lei Nº 13.104, “a Lei dos Feminicídios”, completa seis anos - foi inicialmente inspirado em um caso de 2016, no Rio Grande do Norte, em que um menino de 3 anos testemunhou o feminicídio da mãe e passou a imitar diariamente o som dos tiros que ouviu. A condução do trabalho foi orientada pelo jornalista britânico Iain Overton e por um dos princípios básicos do jornalismo: “Busque a Verdade e Divulgue. Dê voz aos que não têm voz ”.
A “LEI DO FEMINICÍDIO”
A Lei Nº 13.104, de 9 de março de 2015, incluiu o feminicídio como qualificadora de homicídios no Código Penal Brasileiro. A Lei engloba os casos que envolvem violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação ao alvo por ser mulher. Registros policiais e da justiça a respeito se multiplicam e acendem sinais de alerta também na pandemia. A partir da Lei, casos em que o crime é cometido na frente dos filhos passaram a render penas maiores para os assassinos.
Os gritos de Emanuel
Uma música postada em 2020 no Instagram narra, em pouco mais de 3 minutos, a agonia encravada há duas décadas no peito - e também na cabeça - do estudante potiguar de psicologia Emanuel Santos.
“É uma vida que descreve uma história, afundado em memórias de dias intoleráveis que me doem”, canta o compositor, embalando com batidas de rap a tragédia que testemunhou aos 4 anos.
Em 3 de dezembro de 2000, o ano em que ganhou o “brinquedo favorito” - “uma bicicleta roxa de rodinhas” - ele viu o pai matar a mãe em Santana do Matos, cidade do Rio Grande do Norte a 191 km da capital, Natal, com uma população 45 vezes menor.
Existiam ali Emanuel, seus pais separados - Gerlândia e Francisco - e, segundo o Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), outros 15.984 habitantes.
“Lugar pequeno e tranquilo”, achavam. Abalado como nunca naquele domingo.
Crédito: Cedida / Arquivo pessoal
Na última foto que fizeram juntos, Emanuel Santos e a mãe, Gerlândia, passeavam em um "Trem da Alegria". Imagem foi registrada no ano 2000 em Santana do Matos. Hoje é memória no perfil do filho dela no Instagram
O menino que viu a vida saindo dos olhos da mãe
Ilustração: Rodrigo Brum
A mulher com quem Emanuel aparece sorridente em fotos antigas no Instagram foi assassinada aos 21 anos. Na véspera, havia ganhado na justiça o direito de receber pensão alimentícia para o filho.
O pai de Emanuel, descrito como agressivo sob efeito de álcool, teria ficado enfurecido com a decisão e “bebido a noite inteira”, conta o hoje subtenente da Polícia Militar Francisco Soares, à época primeiro delegado a atuar no caso.
O assassino era conhecido como Chico Lopes.
Ele não levantou suspeitas ao chegar à casa da vítima “pela manhã cedinho”.
Através de uma janelinha, enxergou o filho e perguntou: “Gerlândia tá aí?”, procurando a ex-parceira. A resposta foi “Tá papai, tá lá dentro”.
A faca estava escondida. O homem entrou no quarto, sentou na cama e acordou a mãe do filho exigindo que o tirasse da justiça, se referindo ao processo de pensão. Acabou contrariado. Houve então silêncio, um grito abafado de “socorro” e o que Emanuel jamais esqueceria.
“Eu vi a vida saindo dos olhos da minha mãe. Quando cheguei no quarto, meu pai estava terminando de esfaquear ela e jogou ela praticamente nos meus pés”. A cena está grudada na mente até hoje.
Ao ver a mãe coberta de sangue no chão o menino correu em desespero e gritou no meio da rua: “MEU PAI MATOU MINHA MÃE, MEU PAI MATOU MINHA MÃE, MEU PAI MATOU MINHA MÃE”.
Crédito: Cedida / Arquivo pessoal
Severina, avó de Emanuel, incentivou o neto a voltar para a escola e deu a ele o que chamaria, também, de salvação: uma vida cheia de amor, para lidar com a dor que o invadiu ao ver, ainda menino, o feminicídio da mãe
A avó, Severina, estava em um dos corredores da casa e jurou dias depois que nunca mais sorriria. O avô, Manuel, chegou esbaforido à delegacia e praticamente caiu na calçada pronunciando “Chico Lopes matou minha filha”.
Ao ouvir o que tinha acontecido, Soares, delegado e também amigo de Chico na época, correu até a casa e ficou em choque.
“Quando entrei só vi a criança chorando e o corpo da mãe. A população dizia que o acusado tinha fugido”.
O policial prendeu o assassino meia hora depois. Ele estava na saída da cidade, com a mão machucada pela brutalidade dos golpes que cravou em Gerlândia. Ao ser pego, confessou “eu fiz uma besteira”, mas expressamente não disse “estou arrependido”.
“Ninguém podia nem andar no meio da rua de tanta gente amontoada. A população estava lá em peso, com medo, em silêncio”, diz Soares.
Edson de Assis Silva, que atuava como escrivão da polícia na época, trabalha em Santana do Matos há 20 anos e, na função que exercia, era quem tomava os depoimentos dos inquéritos.
A versão que ouviu de Chico Lopes foi que “agiu em legítima defesa”. “Ele apenas disse que chegou na casa de Gerlândia chamando para ver o filho. Segundo ele, ela não deixava. Ele disse que forçou a entrada na casa, que ela então pegou a faca, partiu para cima dele, que ele tomou a faca dela e desferiu os golpes para se defender”. A versão é contestada pelo filho.
O Ministério Público do Rio Grande do Norte e o Tribunal de Justiça do Estado confirmaram à reportagem que Chico foi condenado pelo assassinato e transferido para o presídio de Caicó - cidade vizinha - “onde acabou se matando”.
“Quando se fala em crime bárbaro que abalou Santana o que me vem à cabeça é esse”, diz o ex-escrivão da polícia. “Para uma pessoa adulta que não é nada da vítima e nem do acusado, imaginar isso acontecendo já causa revolta. Imagina para o filho, ver o pai fazendo isso com a mãe”.
“Para uma pessoa adulta que não é nada da vítima e nem do acusado, imaginar isso acontecendo já causa revolta. Imagina para o filho, ver o pai fazendo isso com a mãe”. - Edson de Assis Silva, ex-escrivão
Consequências
Ver o que viu naquele dia rendeu a Emanuel anos de bullying na escola e um comportamento agressivo em resposta. Ele diz que “apanhava calado” de colegas de sala. Depois, começou a reagir. Acabou chamado de Emanuel Loucura, um apelido relembrado com dor. O menino ”não aguentava mais”. Abandonou os estudos aos 15 anos e só voltou aos 18, incentivado por Severina, a avó.
Crédito: Cedida / Arquivo pessoal
O menino de Santana do Matos sobreviveu a duas tentativas de suicídio após assassinato da mãe. Passou a dar palestras sobre isso em cidades do Rio Grande do Norte. Hoje ele diz que está se reconstruindo
Ele sobreviveu a duas tentativas de suicídio, tema hoje de palestras e programas de rádio dos quais participa. Teve pesadelos durante mais de 20 anos, revivendo com frequência a perda da mãe.
Do feminicídio fala pouco em público.
Entre os impactos que reconhece estão episódios de estresse, revolta, depressão e ódio. Não só isso.
“Eu quase entrei para o crime e posso dizer que só não não dei errado porque meu avô e minha avó cuidaram de mim, porque me permitiram ter uma estrutura familiar com amor. E porque também tive outros anjos humanos”.
Aos 25 anos, o rapaz afirma que está se “refazendo”.
Ele cresceu sem apoio psicológico ou qualquer outro suporte do Estado.
Não foi o único.
O filho de Gerlândia
A morte de uma mulher por feminicídio significa “várias mortes diárias” para os filhos que ela deixa, diz o estudante de psicologia Emanuel Santos - um desses filhos. O rapaz de 25 anos cruzou o caminho desta reportagem pela primeira vez em julho de 2020, quando contou parte de sua história em uma live de Instagram sobre “os impactos do feminicídio”. A transmissão foi apresentada pela promotora de Justiça do Rio Grande do Norte, Érica Canuto. A entrevista a seguir revela mais sobre os pensamentos que ele passou a compartilhar, a partir de então, com a jornalista Renata Moura, e que pediu que um dia fossem divididos com o mundo.
Emanuel, o que você diria que o feminicídio é capaz de fazer com um menino?
Dilacerar a alma. Provavelmente pelo resto da existência, o menino vai tentando juntar os próprios pedaços.
Crédito: Cedida / Arquivo pessoal
Desproteção foi o sentimento mais forte que o feminicídio de Gerlândia trouxe para o filho. Na imagem os dois aparecem abraçados no ano em que ela morreu
Quais foram as consequências, na sua vida?
Depressão, irritabilidade, agressividade, desobediência, hostilidade, a escola que virou um inferno...Mas o efeito mais forte foi a desproteção. A falta de um manto pra me cobrir. Eu tive meus avós, mas, cara, como é miserável a vida sem uma mãe. É muito difícil ser órfão. É muito difícil você ver todos os seus amigos terem uma mãe, terem um pai, e você não ter aquele alguém que lhe acompanha nas festas de escola. Minha avó não tinha mais idade pra ir pra festa. Então eu ia com uma vizinha, eu ia quando tinha alguém pra me levar.
Como você está hoje?
Eu estou me reconstruindo. Eu estou no processo de reconstrução.
E o que você espera do futuro?
Eu tento viver um dia de cada vez. Se Deus me permitir, se tudo der certo, eu pretendo terminar essa faculdade (de psicologia), fazer uma pós-graduação e começar a cuidar de gente. Meu sonho era ver minha mãe viva, me vendo estudando. Poder ver ela no dia da minha formatura, pertinho. Ela que foi mãe aos 17 e estudou só até a 5ª série.
Eu posso lhe perguntar como era a sua mãe?
Pode. Todo mundo dizia que, da geração dela, ela era a mulher mais linda da cidade. Não é querendo dizer que eu sou o cara mais lindo da cidade, mas minha avó diz que eu sou a cara dela. Minha mãe era uma mulher nova, bonita, sonhadora, guerreira e bondosa. Sempre foi dessas pessoas que dividem. Sempre foi amiga das pessoas que tinham menos. Talvez eu tenha herdado isso dela. Foi uma das grandes partes boas.
Por que você resolveu transformar a história de vocês em música? (O rap Três de dezembro, que narra o dia do feminicídio da mãe dele, foi lançado há um ano).
Porque eu comecei a fazer rap lá na casa do estudante em Caicó (onde estudava história). Tinha passado da data da morte da minha mãe. E de repente eu fiquei inquieto. Então brotou. Era um troço assim, como se já tivesse cicatrizado, mas eu tava puxando uma linha lá de dentro. Uma linha de ponto. E eu puxando dizendo “venha aqui pra fora.” Aí saiu. Eu re-ouvi aquilo a noite toda. Eu passei uns três dias ouvindo essa música. E foi quando parei mais de ter pesadelo. Foi quando eu comecei a sonhar bem.
Na live, você comentou que cresceu lutando pra não reproduzir a violência, para não virar bandido. O que foi determinante para essa não ser sua realidade de vida?
Muita gente boa. Ter gente do bem. Gente que chegou e cuidou de mim. Anjos. Se eu puder definir, anjos humanos. Que chegaram com palavras de amor, com compreensões, com abraços, com “eu te entendo”. Quando eu só entendia a linguagem do ódio. Eu posso lhe dizer que só não dei errado porque meu avô e minha avó me cuidaram muito bem. Tudo que puderam me dar, que puderam fazer por mim, fizeram. Me suportaram em momentos insuportáveis. Me ofereceram uma estrutura familiar com amor. Não tô falando de dinheiro. Minha esposa também foi fundamental para eu me erguer. Foi a primeira pessoa que me levou a um psicólogo bom. E tudo isso através de um querer que foi acendido dentro de mim. Um querer melhorar, um querer resolver, que precisa de apoio, que precisa que a gente tenha a quem recorrer.
Clipe da música "Três de dezembro", de Emanuel Santos
O que você vê como intervenções mais urgentes no Brasil para que não nasçam novas gerações enfrentando as consequências e o sofrimento ainda presentes na sua vida?
A intervenção é cuidar do amanhã. A intervenção é cuidar para não haver novos feminicídios. É fazer rodas de ressignificação de masculinidade. Fazer esse ser humano se olhar. Fazer ele ressignificar o que é ser homem. Eu acho que quando você abre o diálogo para ouvir a dor do agressor, muitas vezes, quando você dá oportunidade de fala aquele cara você dá a ele motivo de explicar a existência dele. É preciso ouvir a história do agressor. Como eu tive que ouvir a história do meu pai. Eu fui obrigado. Eu era para ser o ser humano que queria que todo cara que batesse numa mulher fosse morto. Mas eu acho é que esse cara deve ser tratado. Porque ele é doente. Estou falando como futuro psicólogo. Como um cara que teve que entender o pai para poder viver, para poder existir. Para dizer pronto, agora eu entendi. Agora eu posso me construir. Agora não é Emanuel filho da tragédia. É Emanuel que se constroi. É Emanuel que venceu duas tentativas de suicídio. É Emanuel que tentou viver. Mesmo destroçado mas juntando os pedaços.
“Eu acho que os filhos dos feminicídios têm que começar a ser olhados. Porque isso vai humanizar muita coisa. Vai humanizar até esses homens doentes que nem sabem o mal que causam. Porque muitos se matam, como o meu pai. Muitos não aguentam o peso de vida de ter matado a mãe dos próprios filhos.”
Você relaciona o que aconteceu a sua mãe ao machismo? Por isso fala em ressignificação da masculinidade?
Sim. Eu acho que o que matou minha mãe, acima de tudo, foi uma sociedade machista.
Meu pai tinha muitos filhos e dizia que a mulher que botasse ele na justiça ele mataria. Aí minha mãe se separou dele, ele parou de me dar as coisas. Ela foi atrás dos direitos dela. Colocou ele na justiça. E diante disso, ele surtou. Ele foi lá e matou ela. Minha mãe morreu porque a palavra do meu pai valeu mais que a vida dela. Valeu mais do que eu poder hoje, com 24 anos (em 2020), ter a minha mãe com 45 anos do meu lado. Eu acho que a gente tem que começar a reconhecer o nosso machismo histórico. Tem que acabar essa questão da mulher diminuída. Da mulher ser objeto. E eu acho que os filhos dos feminicídios têm que começar a ser olhados. Porque isso vai humanizar muita coisa. Vai humanizar até esses homens doentes que nem sabem o mal que causam. Porque muitos se matam, como o meu pai. Muitos não aguentam o peso de vida de ter matado a mãe dos próprios filhos.
Como os seus avós ficaram nessa história?
Vovô morreu em 2019, com 98 anos. Teve depressão o resto da vida, depois do que aconteceu. Minha avó, pra você ter uma ideia, sorriu quando eu tinha 8 anos de idade e tropecei dentro de casa. Caí e foi bem engraçado. Mas ela sorriu e começou a chorar. Veja bem, 4 anos depois. Começou a chorar. E eu disse “voinha, o que foi?”. Ela em prantos disse ‘é que eu jurei nunca mais rir depois que sua mãe morreu’. Minha mãe era adotada pelos meus avós. Ela era filha de uma sobrinha de vovó. Eles criaram minha mãe e me criaram. Vovó diz que eu sou um pedaço de minha mãe que ficou. Ela tem 93 anos.
AS MARCAS NAS FAMÍLIAS
Os feminicídios provocam marcas profundas não apenas na mulher - morta - e nos filhos que ela deixa. Para as defensoras públicas Débora Maria de Souza Paulino e Thaís Dominato Silva Teixeira, coordenadoras, respectivamente, do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes e do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, do Mato Grosso do Sul, as crianças deveriam passar por acompanhamento psicológico, mas também é imprescindível oferecer apoio para os/as cuidadores dessas crianças (avós, tios, pais etc). “As famílias das vítimas também passam por dificuldades, traumas, que muitas vezes não são ‘vistos’ pela rede de atendimento. Muitas vezes, a rede de proteção ‘encerra’ o atendimento quando a criança é encaminhada a algum familiar, sem se atentar para o que “vem depois”.
Crédito: Cedida / Arquivo pessoal
Emanuel aparece na imagem barbeando o avô, por quem foi criado: homem, segundo o neto, ficou em depressão com o assassinato da filha
“As famílias das vítimas também passam por dificuldades, traumas, que muitas vezes não são ‘vistos’ pela rede de atendimento.” - Débora Paulino e Thaís Dominato, defensoras públicas
Os destroços de *Daniel
*Daniel tinha 10 anos quando testemunhou o que, diz ele, traçou o resto dos seus dias. “Eu vi meu pai matar a minha mãe e isso devastou a minha vida”.
Em 1993, no barraco onde cresciam na Zona Oeste de São Paulo, o menino e os três irmãos assistiam ao seriado de TV preferido - protagonizado por um herói japonês, órfão - quando uma briga dos pais escalou na cozinha, chamou a atenção, e diante dos olhos deles, foi encerrada com tiros.
As crianças tinham entre 3 e 10 anos.
Violência doméstica para elas já era a rotina da casa.
A mãe sempre apanhava na frente dos filhos. Daquela vez, entretanto, acabou morta.
Ilustração: Rodrigo Brum
“Hoje eu tenho 35 anos. Faz 28 anos que eu não sei o que é dormir direito”, diz Daniel, em meio a pesadelos e depressão que persistem e são, segundo ele, efeitos da violência que presenciava e de outras que ainda sofreria.
No mesmo ano em que matou a ex-mulher, o pai do menino foi morto pela polícia.
Sem detalhes, a Polícia Civil e a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo confirmaram à reportagem que o homem morreu em 1993, na rua de casa, em confronto com policiais.
Órfãos, os filhos foram acolhidos inicialmente pela família paterna, mas cerca de um ano depois foram parar em abrigos.
Documentos judiciais a que a reportagem teve acesso descrevem que os irmãos apresentavam distúrbios de comportamento possivelmente “devido à problemática familiar”. As tias paternas “demonstravam claramente rejeição”, segundo um dos documentos. Elas, com quem passaram a morar após ficarem sozinhos, “não tinham apego ou vínculo afetivo com os sobrinhos”.
A psicóloga judiciária que assina o parecer favorável à institucionalização dos meninos - ou seja, ao encaminhamento deles para abrigos - conclui que a internação das crianças seria necessária, pois elas não estavam sendo atendidas em suas necessidades, “principalmente afetivas.”
“Diante do quadro de irreversibilidade da posição assumida pelos parentes, outra situação não resta a não ser optar pelo abrigamento, cuidando, no entanto, de não separar os irmãos”, escreveu a psicóloga.
Apesar disso, um dos irmãos - o caçula - acabou separado dos outros.
Os três mais velhos foram enviados para um lar juvenil e nunca mais ouviram falar do mais novo.
*Daniel se divide até hoje entre comunidades sobre pessoas desaparecidas, nas redes sociais, postando a história da família na tentativa de encontrá-lo.
Os cacos do menino
*Daniel já ouviu “muitas histórias de pessoas que tiveram vida trágica e depois venceram na vida”.
Mas quando é a própria trajetória que conta, ele não hesita na constatação: “Eu e os meus irmãos, a gente não conseguiu”.
Ele e os irmãos passaram por pelo menos três abrigos. O que os manteve por mais tempo, até a maioridade, é descrito pelo padre Agnaldo Soares Lima, de 59 anos, como “depósito de adolescentes onde faltava preparo para lidar com eles”.
O padre é assessor da Rede Salesiana Brasil de Ação Social e, numa mudança de gestão, foi dirigente do abrigo entre os anos 2003 e 2009, quando capitaneou os projetos de reaproximação dos jovens das famílias e, por fim, de fechamento da instituição.
O abrigo, segundo o padre, recebia crianças, pré-adolescentes e adolescentes "fora das faixas mais procuradas de adoção”. Era lá onde cresciam, durante anos sem contato com a família. “Eram pré-adolescentes e adolescentes que já vinham de outras instituições, que haviam passado em outras instituições quando mais novos e aí quando chegavam por volta dos 11, 12 anos, de idade começavam a dar mais trabalho e simplesmente eram transferidos para o lar juvenil”, relembra. “Eles estavam ali porque não tinham outra alternativa”.
O lar das camas pequenas
Na descrição do padre, os meninos iam para a escola, faziam as tarefas de casa quando voltavam, tinham dormitórios, um espaço para refeições, e se ocupavam com esportes. Havia no lar piscina, quadra e uma área para brincadeiras.
“Mas o fato que eu gostaria de registrar é que os dormitórios tinham camas muito pequenas, mesmo para eles que eram crianças. Eram ambientes sem nenhum atrativo. Dormitórios para seis, sete, oito. Um refeitório pintado de cinza e marrom com luzes incandescentes. Um ambiente meio escuro, triste. Um lugar muito frio”.
O padre afirma que a diretoria que o antecedeu - e que não tinha relação com a Rede Salesiana - era formada por “pessoas muito abnegadas, de muito boa vontade, mas sem preparo pedagógico para a função”. Na prática, ele descreve que o lar onde *Daniel e dois dos três irmãos cresceram com dezenas de outros meninos era regido à base de ameaças, que muitas vezes iam além.
“Encontramos alguns meninos com até 11 boletins de ocorrência em geral por brigas, agressividade. Quando havia um enfrentamento eles (da diretoria) acabavam chamando a polícia dentro do lar, o lugar onde os meninos residiam, o que para nós era uma coisa absurda”. Não foram localizados registros nesse sentido, envolvendo a polícia, sobre Daniel e os irmãos.
Quatro irmãos e mais tragédias no destino
Já adultos e fora do lar juvenil, um dos irmãos de *Daniel foi preso e condenado por participação em um roubo à mão armada. Segundo o processo, ele dirigiu o carro que facilitou a fuga dos assaltantes. Outro irmão morreu em decorrência de uma explosão no restaurante onde trabalhava como chapeiro.
*Daniel se diz destruído. “Eu sinto pelos meus irmãos. Eles sempre sofreram. Tudo para a gente sempre foi mais difícil e eu acho que tudo o que aconteceu influenciou nisso aí.
Quando a gente saiu do orfanato a gente não teve estrutura. Nossa vida sempre foi ser peão, foi nunca ter oportunidade, incentivo, alguém que conversasse”, diz.
“Meu irmão que está preso estava em desespero. Não quer dizer que não mereça pagar pelo que fez. Ele vai pagar. Mas quando fez isso, ele fez pra levar as coisas para dentro da casa dele. Só escolheu o jeito errado de fazer”.
Em relatório de um dos abrigos por onde passaram, o irmão que está preso disse, ainda criança, que queria ser jogador de futebol. “Quase nunca muda esse objetivo”, frisou o profissional responsável por registrar o sonho, no documento da vez.
O menino é descrito como “criança esperta, que sente saudade do irmão mais novo e dos tios e avós paternos. Ele também fala da morte dos pais: “Meu pai matou minha mãe e a polícia matou meu pai”.
Crédito: Cedida / Arquivo pessoal
*Daniel, que segura a espada na foto, é o mais velho de quatro irmãos. Meninos viram o pai matar a mãe a tiros, em São Paulo: "Vidas devastadas", diz ele durante entrevista
Mais de duas décadas depois está atrás das grades.
Em um exame criminológico pedido pela justiça para analisar - com parecer de profissionais de psicologia e serviço social do presídio - se mereceria migrar do regime fechado para o semi-aberto, ele admite que usa crack desde os 16 anos e que entrou para a vida do crime por causa das drogas. Se diz arrependido e não cita a tragédia familiar.
“O laboratório de criminosos” que a sociedade não tolera
O juiz que pediu o exame explica que o procedimento “revela-se indispensável (...) em razão da gravidade do delito cometido, bem como pela personalidade criminosa por ele revelada”. “Em outros termos: o interesse público exige a realização da avaliação supracitada, porquanto não se pode admitir que a sociedade seja laboratório de criminosos”.
A avaliação a que se refere inclui 11 perguntas, entre elas se ele tem se dedicado ao trabalho ou ao estudo durante cumprimento da sentença, se dá mostras de arrependimento dos atos ilícitos, se possui planos ou perspectivas para o futuro, como age ou parece agir diante das instabilidades comuns da vida, se há elementos que indicam evolução no processo de ressocialização, se recebe visitas de familiares e ou amigos, se dá sinais de que voltará a cometer crimes e se mostra-se aconselhável conceder-lhe a progressão de regime. A resposta que recebeu foi “não”. Um celular teria sido apreendido no bolso de sua calça, uma falta considerada grave.
*Daniel tem convicção de que o destino dele e dos irmãos foi traçado pelo que viram em casa - de uso de drogas pelos pais, a agressões constantes que a mãe sofria e, por fim, ao assassinato dela e ao fato de terem crescido sem alguém para ampará-los, oferecer apoio, afeto ou terapia.
É uma análise da qual a defensora pública Paula Sant'Anna Machado de Souza, coordenadora do Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres de São Paulo, não discorda.
“A ausência da proteção integral dessas crianças, conforme preconiza o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) - que, no meu entender, vai de encontro com institucionalizações e ausência de apoio estatal - é um fator que impacta para sempre a vida de crianças e jovens”, diz ela, acrescentando que a sensação de falta de escuta e apoio pode levar crianças e adolescentes que vivem esse tipo de tragédia a crescerem achando que nem a vida delas, e nem a de suas mães, importam para a sociedade.
A defensora afirma que os filhos das mulheres vítimas de feminicídio continuam esquecidos no Brasil e vai além: “Entendo urgente que essas crianças recebam apoio contínuo dos serviços da educação, assistência social, sistema de justiça e saúde para minimizar os danos e violência vivenciadas”.
Daniel e os irmãos não tiveram qualquer suporte. “Nós vimos, nós vimos meu pai matar a minha mãe e ficamos aqui sem nada”, lamenta, usando nome fictício na reportagem.
“Minha vida, por tudo isso, foi preenchida com ódio. Quando eu era criança, meu jeito de botar isso pra fora era gritar, desobedecer e brigar na escola”, diz ele.
“Eu também tive tudo para virar agressor de mulheres. Meu pai sempre dizia que mulher só entende a linguagem da porrada. Mas sabe por que eu não me tornei igual a ele? Porque eu tenho duas filhas que um dia serão mulheres e eu não quero que ninguém toque nelas. E não quero que elas olhem pra mim como eu olhava para o meu pai”.
O Tribunal de Justiça de São Paulo foi procurado pela reportagem mas não comentou o caso dos irmãos e nem sobre o assassinato da mãe deles. Também disse que, por conta da pandemia e o retorno gradual dos trabalhos presenciais, o desarquivamento de processos só ocorre em casos de extrema urgência.
“Eu também tive tudo para virar agressor de mulheres. Meu pai sempre dizia que mulher só entende a linguagem da porrada. Mas sabe por que eu não me tornei igual a ele? Porque eu tenho duas filhas que um dia serão mulheres e eu não quero que ninguém toque nelas. E não quero que elas olhem pra mim como eu olhava para o meu pai”.
O sofrimento na mente e no coração
Em uma análise sobre o cenário enfrentado ainda hoje pelos filhos das mulheres vítimas de feminicídio no Brasil, o padre Agnaldo Soares observa que “de forma geral, para tudo que é demanda da infância, com problemas sociais, psicológicos e familiares graves, nós não temos um serviço especializado, um serviço adequado, e os equipamentos que temos deixam muito a desejar, tanto mais em casos específicos como esses, onde a mãe é vítima de violência e muitas vezes acaba sofrendo o homicídio dentro de casa”.
“Com certeza essa situação”, diz o padre, traz todo tipo de consequência. Para além do que eles (filhos) manifestam no comportamento externo, podemos imaginar o sofrimento interno, psicológico, que fica guardado dentro da mente e do coração”.
O mantra dos meninos
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Se existe outra coincidência na tragédia que os meninos nesta reportagem viveram está o que emerge como mantra, repetido, com algumas variações, bem assim: “Eu vi o que esse homem fez com você, mãe, e quando eu crescer eu vou matar ele”.
O desejo de vingança diante de episódios diários de violência era expresso com frequência por *Daniel na infância, antes de o pai dele ser morto pela polícia.
Emanuel costumava externar algo parecido, quando, ainda menino, desabafava com a avó sobre o feminicídio que abalou sua história - condenado pelo assassinato, o pai dele cometeu suicídio.
Os meninos não eram e continuam não sendo, porém, os únicos a compartilhar esse tipo de pensamento. E embora seja impossível assegurar se uma criança que faz uma promessa do tipo algum dia irá cumpri-la, a combinação das palavras “eu vou matar quando crescer” é entendida por membros da família e especialistas como sinal de alerta.
O temor é de que - impulsionados ou não por outros determinantes da criminalidade - a ameaça de assassinato ou outros crimes possam efetivamente acontecer se nenhuma intervenção for feita.
O gás da violência
“Tem um livro do (Carl) Jung chamado 'O desenvolvimento da personalidade' em que ele fala que quando a violência é explícita ela é imediatamente absorvida (por quem a presencia). Mas mesmo a violência não explícita, mas aquela violência psicológica. A criança vai respirando esse gás, esse gás vai insidiosamente penetrando nela e isso de certa forma vai moldando o seu caráter e a sua personalidade. Então isso é uma preocupação tremenda. Além de afetar a mulher, afetar uma criança que está com a personalidade em desenvolvimento é um dos lados mais perversos da violência doméstica”, diz o juiz do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Rodrigo Capez, avaliando o cenário como “ absolutamente devastador e sem dúvida uma preocupação enquanto política pública".
*Ana, que viveu cinco anos de terror e agressões nas mãos e palavras do então companheiro em Macaíba, município da Região Metropolitana de Natal, no Rio Grande do Norte, que o diga.
Ela tinha 20 anos quando achou que fosse morrer diante dos filhos. “Eu saí de casa dentro de um camburão com eles pequenos, para fugir. Para não morrer”, relembra, chorando.
Uma das crianças, hoje adolescente, repetiu por anos “eu vou matar ele”, se referindo ao ex-companheiro da mãe. O rapaz nunca teve acompanhamento psicológico. Ele tenta se livrar desse tipo de pensamento dentro da igreja. “É um sofrimento pra mim”, diz *Ana.
“Mamãe está morrendo”
Em Manaus, capital do Amazonas - maior estado do Brasil e onde a taxa de feminicídio por 100 mil mulheres mais cresceu no país entre 2018 e 2019 - *Fernando viu o companheiro da mãe acertar a testa dela em cheio com um martelo.
O menino tinha 5 anos na época. O irmão era um ano mais novo e não segurou o desespero, gritando: “FERNANDO, FERNANDO, MAMÃE VAI MORRER...ISSO É SANGUE, FERNANDO. MAMÃE ESTÁ MORRENDO”.
O caso foi registrado em 2015, mesmo ano em que a lei brasileira dos feminicídios começou a valer. A mulher que caiu ensanguentada na frente dos filhos sobreviveu, após dias no hospital. O companheiro dela foi preso, mas depois solto pela justiça.
Crédito: Ascom DPEAM
Defensoria Pública do Amazonas é praticamente exceção no país com projeto que busca os filhos das vítimas de feminicídio no estado para ampará-los
Fernando nunca esqueceu o que viu. A mãe se emociona quando conta. “Ele diz 'mamãe, eu lembro de tudo. Tudo o que aquele homem fez com você. Eu vou crescer e vou matar ele. Eu tenho tudo guardado aqui'”, apontando para a cabeça. A mulher concedeu a entrevista para esta reportagem em maio de 2019, quatro anos após a tentativa de feminicídio que sofreu.
Lembrando das palavras do filho, ela chora. “Eu fico preocupada. Tenho medo que ele faça realmente isso. Eu não quero que faça. Eu não quero ver meu filho atrás das grades”.
Assim como *Ana, ela deposita fé “principalmente em Deus” para “tratar da mente dele, e tirar tudo isso do pensamento dele”. “Porque ele ainda é criança, né? aí tudo que ele me pede eu faço pra ele esquecer. Eu procuro ocupar a mente dele o máximo que eu posso”. A última tentativa foi inscrevê-lo em uma escolinha de futebol.
A história da brasileira e dos filhos é uma das dezenas que o Departamento de Proteção e Defesa da Mulher da Defensoria Pública do Amazonas encontrou em meio a processos que chegaram à justiça do estado nos últimos anos.
“Órfãos do feminicídio”
O objetivo do projeto, chamado “Órfãos do feminicídio”, é identificar o que aconteceu especialmente com crianças depois do feminicídio tentado ou consumado da mãe e encaminhá-las para acompanhamento psicológico, apoio jurídico ou outros serviços quando necessário.
Por meio da iniciativa, pela primeira vez *Fernando, o irmão e a mãe receberiam apoio psicológico. A mulher foi contactada meses depois da primeira entrevista para confirmar se eles começaram e continuavam com esse acompanhamento, bem como os possíveis efeitos que registraram, mas não retornou ligações nem mensagens da reportagem.
Não é só no caso deles que essas dúvidas estão no ar.
Quantos são os filhos das mulheres vítimas de feminicídio? Quantos vão ter sequelas dos pontos de vista psicológico, emocional, social ou no comportamento? Que sequelas vão ser essas? Quantos vão reproduzir a violência? Ninguém consegue responder do ponto de vista global para o Brasil. A investigação conduzida para esta reportagem mostrou que existem respostas pontuais e opiniões. Mas não existem levantamentos estruturados. Não há uma investigação nacional dizendo “a realidade é essa e a gente precisa cuidar dela”.
“Tem um livro do (Carl) Jung chamado 'O desenvolvimento da personalidade' em que ele fala que quando a violência é explícita ela é imediatamente absorvida (por quem a presencia).” - Rodrigo Capez, juiz do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
O luto das meninas
Ilustração: Rodrigo Brum
*Beatriz estava toda suja de sangue quando seus gritos de “SOCORRO” ecoaram pela madrugada e atraíram os vizinhos, no interior de São Paulo. A criança tinha entre 7 e 10 anos quando viu o pai esfaquear a mãe até a morte. Ela chegou a ficar agarrada ao corpo e desde então, “sempre que se sente assustada ou desconfortável, faz xixi ou defeca na roupa”.
A existência da menina foi uma das confirmadas pela reportagem em meio aos mais de 600 casos registrados como feminicídio no estado desde 2015. A reação dela foi apontada pela família, em entrevista posterior por meio de um aplicativo de mensagens, como um dos efeitos do crime que perduram quase dois anos depois. “Ela se tornou uma pessoa muito nervosa”, disse um parente. O pai da criança está preso. Ela faz tratamento com psicólogo em uma clínica privada.
No artigo “Gender difference, exposure to domestic violence and adolescents’ identity development” (“Diferença de gênero, exposição à violência doméstica e desenvolvimento da identidade de adolescentes”, em tradução livre), o PHD em psicologia clínica e professor da North West University, da África do Sul, Erhabor S Idemudia, observa que “vários estudos sugerem que a exposição à violência doméstica pode afetar meninos e meninas de maneiras diferentes”.
Meninos, escreve ele, demonstram comportamentos chamados de “mais externalizantes” - o que inclui, por exemplo, impulsividade e agressividade - enquanto meninas tendem a exibir os “mais internalizantes”, como ansiedade, retraimento e depressão. Na adolescência, entretanto, é possível que o quadro se inverta. “Os meninos podem apresentar mais sentimentos de tristeza, enquanto as meninas podem exibir mais sentimentos de raiva ”, explica.
Medo
A mãe de outra vítima de feminicídio em São Paulo, que pediu para manter a identidade em sigilo na reportagem, resume com uma palavra a principal consequência que o crime, em 2016, trouxe para a vida da neta: “medo”.
A criança era filha única e tinha 5 anos quando viu a mãe ser assassinada por um conhecido. O caso também foi registrado pela polícia como feminicídio.
Para a filha da vítima, os impactos ainda são aparentes: pesadelos frequentes, medo de homens, estudos interrompidos e uma tristeza que salta aos olhos.
De acordo com a avó materna, a menina passou a viver com a família do pai. A alternativa que encontrou para lidar com a dor é o apoio afetivo que tem recebido de pessoas próximas. De certa maneira, diz a avó, isso tem funcionado. “Porque por um tempo não lembra do que aconteceu”. Logo depois do crime a menina começou tratamento psicológico. A estratégia ajudou, segundo a avó, mas não durou muito.
A família não teve condições de continuar, por causa de problemas financeiros.
“Ela hoje poderia ser descrita como uma criança triste”.
“Eu luto não só pela minha mãe”
Estimar quantos filhos e filhas de mulheres assassinadas terão sequelas ou reproduzirão a violência no futuro, segundo a professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte do Instituto, Maria Júlia Kovács, é difícil. “O risco”, diz ela, “existe, mas o ser humano surpreende nas suas possibilidades de enfrentamento”.
“Cada ser humano tem sua história. A violência vivida na infância poderá resultar em diversas formas de enfrentamento.” - Maria Júlia Kovács, professora da USP
A professora ressalta que “não é porque viveu a violência que a criança fará o mesmo como adulta”. “Cada ser humano tem sua história. A violência vivida na infância poderá resultar em diversas formas de enfrentamento. Pode levar ao adoecimento físico ou psíquico, pode levar a pessoa a abandonar a vida, resultar em uma possível busca por um casamento harmonioso, ou pode ser que nada disso aconteça”.
Em vez de retrair, o episódio também pode provocar o inverso. “A pessoa, por exemplo, pode se tornar uma ativista contra a violência”.
É assim que *Marina, de 22 anos, se apresenta em manifestações de rua e aos seus cerca de 1 mil seguidores em uma rede social desde que a mãe foi registrada como vítima de feminicídio.
O caso foi um dos que a reportagem identificou no universo de 184 boletins de ocorrência publicados em São Paulo em 2019 - ano de recorde para feminicídios no Brasil e também no estado.
“Vocês sabiam que no Brasil, cerca de 12 mulheres são vítimas de feminicídio, POR DIA?”, pergunta a jovem no início de um post cerca de oito meses depois, nas palavras dela, de a mãe entrar para a estatística.
Em meio a outros números que revelam o mundo de feminicídios que se alastra por todos os cantos do Brasil, a menina frisa que poderia “fechar os olhos e a boca sobre essa realidade, mas não quer fazer isso, nem deixar que isso aconteça”.
“Eu luto não só pela minha mãe, eu luto porque sou mulher, eu luto pela minha filha que também é mulher, eu luto pra todas as mulheres que pensam e agem como se não tivessem o direito de gritar pela sua liberdade!”, justifica, completando o texto com “POR NENHUMA DE NÓS A MENOS”, em letras maiúsculas, como em um grito que compartilha online.
A intensidade da dor
No livro “Morte e desenvolvimento humano”, de 1992, a professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Maria Júlia Kovács, frisa que “a morte da mãe, do pai ou de um irmão provoca uma imensa dor”. “A perda de uma pessoa querida engendra uma grande crise com fortes sentimentos de tristeza, de medo e tantos outros sentimentos. O luto é o processo de elaboração dessa perda, uma crise de grandes dimensões”.
E quando a morte é decorrente de um feminicídio? É possível descrever a intensidade dessa dor? A intensidade dessa crise? “Não temos como medir", responde em entrevista por e-mail para esta reportagem quase 30 anos após escrever o capítulo “Morte no processo do desenvolvimento humano: A criança e o adolescente diante da morte”, publicado no livro.
“A morte da mãe é uma das perdas mais difíceis”, diz a professora. “E a morte violenta por assassinato pode potencializar esse sentimento”.
Estudos nacionais e internacionais têm tentado estimar a dimensão do problema. Uma revisão sistemática da literatura conduzida por pesquisadores na Austrália, Índia e Holanda, sobre saúde mental e bem estar de crianças após o homicídio de um dos pais por alguém próximo - ressalta, por exemplo, que crianças que testemunharam o assassinato são mais propensas a desenvolver Transtorno do Estresse Pós-traumático, problemas emocionais e de comportamento.
O estudo americano "How children and their caregivers adjust after intimate partner femicide" (“Como crianças e seus cuidadores se adaptam após o feminicídio”, em tradução livre) enfatiza que "há grande potencial de surgirem efeitos duradouros na saúde física e mental" e que "não aliviar possíveis sintomas pode bloquear a capacidade da criança de passar pelo processo de luto e se recuperar da perda traumática que sofreu".
Uma análise sobre pessoas que superaram o trauma da violência doméstica na infância, de autoria da professora associada da Oregan Health & Science University, Ana Quiñones, observa que “estudos que enfocam as repercussões desse tipo de trauma descobriram que adolescentes expostos à violência doméstica e / ou abuso infantil têm maior probabilidade de cair na delinquência ou em depressão.
No estudo italiano "Femicide and murdered women's children: which future for these children orphans of a living parent?" (Feminicídio e filhos de mulheres assassinadas: que futuro para essas crianças órfãs?), publicado em 2015, os pesquisadores são diretos: "Se o tratamento para esses filhos for ignorado ou adiado, adequações de comportamento, tanto no curto quanto no longo prazos, podem ser seriamente comprometidas”. Eles observam que “o cuidado imediato e intensivo para essas crianças e suas famílias é essencial”.
Falhas do Estado
Crédito: Renata Moura
Árvore de palavras mostra parte dos nomes das mulheres vítimas de feminicídio em São Paulo desde 2015 e Gerlândia, a mãe de Emanuel, assassinada no Rio Grande do Norte
Gerlândias, Silvanas, Marias, Anas, Priscilas e muitas outras mulheres e meninas identificadas como vítimas de feminicídio no Brasil morreram e morrem deixando uma série de perguntas, mas também de certezas sobre a mesa.
Promotores de justiça, defensores públicos e outros especialistas nas áreas de violência e direitos humanos ouvidos pela reportagem afirmam que há no Brasil uma inação do Estado em relação aos filhos das mulheres vítimas de feminicídio: faltam políticas públicas desenhadas para eles, informações e articulação nas poucas iniciativas que existem para um trabalho em rede.
O resultado são crianças, adolescentes e jovens com sequelas emocionais e outras não resolvidas que chegam a acompanhá-los por décadas - com possíveis repercussões para a sociedade. “Não há rede de apoio para essas crianças. E isso é uma falha. A atuação do Estado vai somente até o término do processo com a condenação ou não do agressor. A rede de apoio só funciona enquanto a mulher está viva”, ressalta Pollyana Vieira, defensora pública que coordena o projeto “Órfãos do Feminicídio”, no Amazonas.
“O trabalho que nós estamos fazendo mostra que as crianças expostas à violência doméstica sofrem impactos sociais, psicológicos e educacionais, entre outros, e que elas precisam de assistência financeira e psicológica, mas o Estado não age neste particular”. Projetos de lei que poderiam resolver essas lacunas estão encalhados no Congresso.
Em entrevista para a reportagem ainda no início da apuração, em 2019, Eugênia Villa, delegada da polícia civil do Piauí e criadora da primeira delegacia especializada em investigar feminicídios no Brasil, disse que “o país teima em tratar a questão dos crimes e não da violência” e que está perdendo de vista questões fundamentais: “O que restou dessa família após o feminicídio? Quais são as consequências desse assassinato? Quem é que está olhando por essas crianças? Como estão essas crianças?”, pergunta.
Para a delegada, o país “só está se preocupando com o autor do crime, o autor para encarcerar” e o Estado que engendrou toda uma técnica para colocar o responsável pelo assassinato dentro de uma cela e condená-lo, não engendrou caminhos para reparar os danos causados às pessoas que ficam - incluindo na lista filhos e mulheres que sobrevivem. No Piauí, mais de 80% dos feminicídios, segundo estimativas que apresentou à época, foram cometidos dentro de casa e eram inúmeros os relatos de crianças tentando impedir o pai de matar a mãe. “Coisas horrorosas. Cenários devastadores da condição humana”, disse Eugênia.
“Quadro alarmante”
Só nos últimos cinco anos, cerca de 6 mil mulheres e meninas foram registradas em boletins de ocorrência no Brasil como vítimas de feminicídio - com o ápice dos casos em 2019, ano em que a Comissão Interamericana de Direitos Humanos chamou a atenção da comunidade internacional para a “prevalência alarmante dos casos”, descrevendo os assassinatos como flagrante violação de direitos humanos e demonstrando preocupação justamente com “as consequências trágicas que as tentativas de assassinato têm para as vítimas e suas famílias, com profundos impactos psicológicos, emocionais e físicos que esses atos de violência significam".
Companheiros, maridos e os "ex" encabeçam a
Crédito: Wilson Dias (Agência Brasil)
Ato contra feminicídios realizado em 2016 em Brasília: número de vítimas se multiplicou nos anos seguintes e em 2019 Comissão Interamericana de Direitos Humanos chamou quadro de alarmante
lista de assassinos. Cometem o crime principalmente com facas, mas o uso de armas de fogo e de outros meios tem crescido. Registros da justiça e da mídia mostram que a maioria chegou ao extremo porque a mulher decidiu terminar a relação, encontrar um novo amor, estudar, trabalhar, dizer “não” ou simplesmente existir. O número de filhos que perderam as mães nesses casos e os impactos que sofrem no país são desconhecidos. Do estado de São Paulo, porém, vem pistas. Um cruzamento de dados realizado pela reportagem, a partir de respostas obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI), de documentos judiciais, reportagens e posts das famílias nas redes sociais, mostra que apenas em território paulista ao menos 327 das 634 mulheres vítimas entre março de 2015, quando a lei dos feminicídios começou a valer, e agosto de 2020, eram mães. Elas deixaram mais de 600 filhos, a maioria com até 12 anos. Uma estimativa conservadora aponta que em ao menos 12,77% dos casos, ou em 81 deles, os filhos viram o assassinato.
Especialistas confirmam que as consequências são variadas e podem ser tão devastadoras quanto às relatadas por *Daniel e Emanuel - meninos que ficaram órfãos quando os crimes nem eram enquadrados como feminicídios e que gritam: ficaram invisíveis aos olhos do Estado.
Políticas que não podem esperar
Crédito: Alex Regis
Érica Canuto, promotora de justiça do Ministério Público do Rio Grande do Norte: "Brasil não está evitando feminicídios nem os danos causados por eles"
“As pessoas que sofrem violência, que veem violência, não só tendem a reproduzir essa violência ou o papel de vítima, mas a serem afetadas de várias outras formas”, diz a promotora de justiça do Ministério Público do Rio Grande do Norte, Érica Canuto, acrescentando que o Brasil nem evita feminicídios nem os danos causados por eles.
“As políticas públicas não podem esperar que as coisas piorem, que os números cresçam, que mais mulheres morram”, alerta.
Especialistas afirmam que os filhos das vítimas têm tido direitos humanos violados e ficam invisíveis no país, sem políticas públicas de acompanhamento e apoio efetivo e integral.
Entre as lacunas de informações que existem estão quantos desses filhos tendem a repetir os passos dos pais, alimentando o ciclo de violência. Não
há dados nacionais sobre isso. Em um levantamento da reportagem junto ao sistema carcerário do país, a Coordenadoria de Unidades Prisionais da Região Noroeste de São Paulo é uma das exceções no deserto de dados. Desde que a lei dos feminicídios foi aprovada, ao menos 221 feminicidas deram entrada no complexo.
Desse total, 22,17% afirmam que cresceram em lares violentos, tiveram as mães assassinadas ou vítimas de outros tipos de violência doméstica - ou seja, podem ter reproduzido na fase adulta o que viam em casa na infância.
Dentre os presos, 40,72% já haviam cometido outros crimes. A lista é liderada por roubo, furto e pela lei Maria da Penha.
Os homens que responderam ao questionário da reportagem, aplicado pelas unidades prisionais, são pais de 186 filhos, 33,87% crianças com até 10 anos. Não há informações sobre quantos deles receberam apoio psicológico ou de outro tipo do estado. Nem se sabe até que ponto esse possível apoio foi efetivo.
Para os analistas, não há dúvidas, no entanto, sobre a necessidade de intervenções precoces para amparar os filhos das mulheres e evitar que consequências que sofrem – entre elas as possíveis relacionadas à reprodução da violência – se perpetuem. Juliana Martins, coordenadora Institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ressalta que “há todo um trabalho em rede precisando ser fortalecido e aperfeiçoado” no Brasil em relação às vítimas de feminicídio, mas que há desafios. Entre eles, discussões ideológicas em curso e “o desmonte na política de proteção às mulheres que começou pouco antes de Bolsonaro (assumir a presidência) - e que continua”.
“Aquilo que já era frágil, está ainda mais frágil”, diz, acrescentando que o governo tem tratado questões como gênero de forma muito vinculada à ideologia, e que isso não deveria interferir em políticas públicas.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) não comentou o assunto por meio da assessoria de comunicação. Via Lei de Acesso à Informação, ressaltou, apenas, que vai lançar o Plano Nacional de Enfrentamento aos Feminicídios e que ele deverá estimar quantos filhos as vítimas deixam. “A partir desse diagnóstico serão construídas e implementadas políticas públicas”, diz. Juliana Martins se mostra cética: “Dizer que vai fazer não significa nada. Que políticas são essas para os filhos? Como
Crédito: Renata Moura
Iniciativa em Macaíba, no Rio Grande do Norte, chama atenção para os vários tipos de violência contra a mulher, incluindo a familiar e a física: conscientização
serão disponibilizadas, executadas?” Para Martins, o feminicídio “é a expressão mais cruel da violência de gênero” e ainda é um tipo de violência que o Brasil torna invisível e tolera, assim como o faz com os danos causados a quem fica.
“Filhos das vítimas precisam de abordagem diferenciada”, diz Defensora Pública
Pollyana Vieira, defensora pública que coordena o projeto Órfãos do Feminicídio no Amazonas, clama que os filhos das vítimas sejam vistos com uma lente diferenciada. Pela perspectiva dela, é fundamental criar programas específicos de tratamento para eles, que considerem a particularidade das situações que viveram, além de capacitações sobre gênero para os profissionais que irão assisti-los.
“Nós já apresentamos essa necessidade ao governo (do Amazonas) e estamos esperando resposta. Infelizmente, ainda vivemos em um país com a quinta maior taxa de feminicídios do mundo. Como é possível não termos um projeto desse como política pública?”, questiona.
Destruição
No geral, a equipe do projeto tem identificado uma quase generalizada falta de informações para as famílias sobre serviços gerais de apoio e como acessá-los.
“Apenas uma minoria dos filhos das mulheres já recebeu algum tipo de suporte após o crime”, diz Lidiane Amaral, assistente social encarregada das entrevistas.
A maioria das crianças, de acordo com ela, testemunhou cenas de violência contra a mãe mais de uma vez. Em um dos casos, a mulher teve os cabelos arrancados, foi esfaqueada e estrangulada na frente dos dois filhos pequenos.
“As crianças tiveram acompanhamento psicológico porque a avó materna procurou ajuda. Ela relata que os netos demonstraram quadro de isolamento e profunda tristeza. E que depois do acompanhamento, melhorou significativamente o comportamento deles, inclusive o rendimento escolar (que caiu após o feminicídio)”, diz Lidiane. A terapia que fizeram foi oferecida por uma ONG (Organização Não Governamental).
Enquanto esta reportagem era escrita, as crianças estavam vivendo com a avó materna e o pai, que ficou preso por dois anos, estava à espera de julgamento.
A mãe arrancada dos 8 filhos
Entre crianças que não presenciaram o feminicídio, a assistente social observa que também é difícil suportar a realidade de ter a mãe arrancada de suas vidas.
O exemplo mais forte que viu foi o de 8 irmãos que encontrou separados, sob cuidados de diferentes familiares - entre eles o pai, a tia e a avó - depois que a mãe, que trabalhava como prostituta, foi assassinada por um cliente.
“Todas as crianças são menores de 14 anos. O pai é usuário de drogas e, quando está em abstinência, agride elas fisicamente. Ainda estou tentando entrar em contato com ele”, disse Lidiane, em entrevista concedida no ano 2019. “As três que estão com a avó materna estão estudando, porém com traumas emocionais. Ao relatarem como era a convivência com o pai, elas demonstram profunda tristeza. E apesar disso, sentem o desprezo do pai. E sentem muito a ausência da mãe”.
A família não procurou apoio. E o Estado não estava procurando ou tomando conta das crianças. A Defensoria Pública do Amazonas as encaminhou, então, para acompanhamento psicológico.
“O Estado falhou com elas. A falha está em não ser proativo e não ter campanhas massivas para orientar essas famílias em relação à rede de apoio e aos serviços. A falha é não dizer às pessoas quais são os direitos delas”, diz Lidiane.
A dor de uma irmã
A assistente social sente em casa uma mostra do drama que as famílias que atende enfrentam. Sua irmã também foi vítima de feminicídio, crime, diz ela, que destroi a família inteira.
“Minha irmã foi casada durante 23 anos com um assassino. Ela deixou netos que estão traumatizados. Deixou um pai que já teve dois derrames. Deixou uma mãe deprimida. Ela deixou as irmãs desoladas. Deixou também quatro filhos adultos. O caso dela foi julgado como o primeiro de feminicídio no Amazonas. O assassino foi condenado a 18 anos de prisão”.
Agora, a missão de Lidiane tem sido ajudar outras famílias destruídas por esse tipo de tragédia.
Uma investigação em curso
Crédito: Wilson Dias (Agência Brasil)
Cartaz clama por fim da violência. No Mato Grosso do Sul, Defensoria Pública também quer fim da peregrinação das famílias que não encontram atendimento psicológico na rede pública
Em Mato Grosso do Sul, detentor de uma das maiores taxas de feminicídio do Brasil e distante cerca de 2.270 km do Amazonas, a Defensoria Pública do estado também está em campo de olho nos direitos dessas vítimas.
Um procedimento instaurado em 2019 apura a ausência ou eventuais falhas na prestação do serviço de acompanhamento psicológico para os filhos das mulheres no Estado de Mato Grosso do Sul e na capital, Campo Grande.
A peregrinação que as famílias relatam enfrentar por uma vaga na rede pública de saúde é o motivo da investigação, explicam as defensoras públicas Débora Maria de Souza Paulino e Thaís Dominato Silva Teixeira, coordenadoras, respectivamente, do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes e do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher.
“Nosso foco é principalmente em casos em que as mães sofreram feminicídio tentado ou consumado, em que temos observado dificuldades no encaminhamento das crianças (para o acompanhamento psicológico)”, dizem. "As vítimas ou seus filhos peregrinam em busca de atendimento e, na maioria das vezes, acabam desistindo", frisa Débora. A Defensoria, diz ela, ficou insatisfeita com as respostas recebidas até agora do Estado e não descarta a possibilidade de judicializar a questão.
"Sobre um dos casos que apresentamos eles responderam que a pessoa tinha sido encaminhada para atendimento na clínica-escola de uma faculdade. Então, veja, o poder público não fornece esse acompanhamento. O máximo que faz é encaminhar para o atendimento por outros. É isso (o acompanhamento) que a gente quer cobrar", detalha a defensora.
Na justificativa do procedimento, a Defensoria evoca a Constituição Federal Brasileira de 1988, que no artigo 227 define que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Elas também citam a Lei nº 8.069/1990 - o Estatuto da Criança e do Adolescente - que dispõe sobre a proteção integral de crianças e adolescentes, bem como sobre a adoção de políticas públicas para o seu desenvolvimento pleno e saudável - além da lei Maria da Penha e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), que reconhece a violência contra as mulheres como uma violação aos direitos humanos e estabelece deveres aos Estados signatários, dentre eles o Brasil, com o propósito de criar condições reais de rompimento com o ciclo de violência identificado contra mulheres em escala mundial.
A disparada dos feminicídios no Brasil, dizem as defensoras públicas, "preocupa muito, pois demonstra que apesar de todos os avanços legais e de políticas públicas, ainda não se pode garantir a proteção integral das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar e evitar o desfecho final do ciclo da violência".
O que precisa mudar?
Reprodução - Portais de notícias
O Estado Brasileiro, argumentam Débora e Thaís, tem como característica principal o punitivismo, ou seja, considera como suficiente punir o agressor. "Nós, brasileiros, somos sensibilizados pelo fato (feminicídio) em si, mas logo depois, nos esquecemos, com a ocorrência de outros casos. E nesse contexto, as crianças, filhos e filhas dessas vítimas também acabam esquecidas”, observam as defensoras. “Em muitas notícias de casos dessa espécie, lê-se ‘a vítima deixou um/uma filha/o de x anos’ e fim. Depois disso, muito pouco ou quase nada é feito para essa criança/adolescente".
Embora enfatizem que nem todos que presenciam ou sofrem violência irão reproduzi-la no futuro, elas reforçam que muitas dessas crianças acabam repetindo o chamado ciclo da violência.”Na prática identificamos que muitas pessoas aprendem literalmente que os conflitos devem ser resolvidos através da violência (imposição do poder que acredita que se tem, sobre a outra pessoa que se pretende dominar)”, dizem Débora e Thaís.
Na análise das especialistas, “quanto antes se intervir na formação de consciência dessas crianças e adolescentes, no sentido de construção de identidades conscientes sobre o que viveram e sobre seu papel futuro para uma sociedade mais digna, maior a possibilidade de romper com essa cultura de violência, machista e patriarcal”.
A visão de quem acolhe
Conselhos Regionais de Psicologia e de Serviço Social, além de profissionais das duas áreas em todo o Brasil, foram procurados pela reportagem para ajudar a mostrar um retrato nacional sobre o que acontece com os filhos após a morte da mãe, as possíveis consequências do crime para eles e a sociedade, além de estratégias e políticas públicas que tenham funcionado ou não para ajudá-los a lidar com o ocorrido. Os profissionais receberam links para questionários específicos por e-mail, detalhes sobre o que seria abordado na reportagem e o parecer, com aprovação, do Comitê de Ética da Birkbeck University of London, detalhando todos os aspectos da pauta.
A maioria, no entanto, se recusou a responder ou a compartilhar as perguntas com colegas de profissão. Um dos conselhos de psicologia limitou-se a responder que “a função de divulgar pesquisas, mesmo de temas importantes e relevantes para a produção de conhecimento em Psicologia, não compete ao Sistema Conselhos, pois é enorme o número de pesquisas desenvolvidas no país”. As questões eram voltadas aos profissionais que já atenderam/acompanharam casos de filhos de vítimas de feminicídio e logo no início já faziam essa "triagem", perguntando se já fizeram ou fazem o atendimento a esse público. Nenhum psicólogo respondeu. Os questionários davam a opção de o profissional manter a identidade em sigilo na reportagem. A seguir, confira o cenário apresentado por duas assistentes sociais.
Na Região Metropolitana de Natal (RN)
“As reações a um feminicídio são diversas e os reflexos negativos podem aumentar o adoecimento de uma geração inteira”, analisa uma profissional do Rio Grande do Norte que atua na rede pública de saúde. O único caso que atendeu de filhos de mães assassinadas, segundo ela, envolvia um grupo de irmãos que “demandou suporte à saúde, assistência material e afetiva”. As crianças tinham menos de 11 anos e sofreram impactos sociais, na saúde e psicológicos. “Além da perda da mãe, os irmãos foram rapidamente separados - como ocorreu no caso de *Daniel. Também houve agravo de quadro em uma doença infectocontagiosa pela baixa na imunidade, e o sentimento de perda e abandono”.
Para a assistente social, existem falhas sistemáticas do Estado na hora de lidar com crianças que tiveram as mães vítimas de feminicídio. Na análise dela, “falta estruturação dos equipamentos responsáveis pelo suporte e atenção que os filhos precisarão”. “Esses filhos”, acrescenta, “parecem invisíveis”.
Em Porto Velho (RO)
Em Rondônia, o Núcleo de Análise Criminal da secretaria de Segurança, Defesa e Cidadania estimou, via Lei de Acesso à Informação, que, entre 2018 e junho de 2020, 18 mulheres foram vítimas de feminicídio. Pelo menos três dessas mulheres tinham filhos. Sete, com idades não reveladas, teriam testemunhado o assassinato. O número. entretanto, pode ser maior, uma vez que para alguns casos essa informação não consta nos registros.
Uma assistente social que atua no estado disse, por meio do questionário, que nos poucos casos
Crédito: Google Maps
que atendeu até hoje, “independente de mais novos ou mais antigos, o trauma psicológico causado aos filhos foi irreparável”. “Um fator determinante para que esse efeito tenha aparecido foi presenciar as agressões”, observa ela, acrescentando que os filhos que atendeu passaram a agir de forma violenta, agredindo outras pessoas fisicamente. Eles tentam, no entanto, lidar com a própria história. “Apoio afetivo de familiares e amigos, falar sobre o assunto, ter alguém como exemplo positivo a ser seguido, escrever, pensar no futuro e ter acompanhamento especializado” são as armas que usam nesse processo. Quando existem. “Não existem políticas públicas e nem o trabalho em rede. Cada instituição faz um pouco. Trabalha a situação de forma focal e não em sua totalidade. Ninguém muda uma realidade trabalhando isoladamente”, opina.
A mulher se deparou com um caso semelhante aos registrados em São Paulo e no RN, de irmãos que perderam a mãe e foram separados. “Houve resistência da família ampliada em se responsabilizar por eles”. A assistente social afirma que interromper o ciclo da violência depende das famílias, da sociedade e do Estado. “Com educação iniciada dentro de casa, ensinando aos nossos filhos como uma mulher deve ser tratada, depois com essa educação vindo também da sociedade, denunciando o agressor e participando de lutas organizadas, e do Estado, que precisa dar as condições necessárias para garantir o direito primário estabelecido na Constituição, que é o direito à vida”.
Morte e vida no país sem leis
ENTREVISTA: LAURA CARNEIRO, ADVOGADA, VEREADORA E EX-DEPUTADA
“Os filhos das mulheres vítimas de feminicídio e de todo o processo de violência são esquecidos no Brasil!...O Estado tem que se responsabilizar”
Enquanto países como Argentina, Peru e Itália, que têm taxas de feminicídio menores que a brasileira, aprovaram decretos e leis para assegurar apoio psicológico e financeiro aos filhos das vítimas, no Brasil o que existe são projetos semelhantes encalhados no Congresso. Autora de um deles, a advogada, ex-deputada federal e atualmente vereadora pelo Rio, Laura Carneiro, aponta entre os motivos o fato de o país ter homens como maioria de eleitos.
“O Brasil é o 140º no ranking mundial de representatividade feminina medido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Interparlamentar, entre 193 países. E esse Congresso é o reflexo do país inteiro, ainda predominantemente patriarcal e machista”, diz ela. Nas redes sociais, a mulher de palavras contundentes, quatro vezes deputada federal e três vezes vereadora, exibe o combate à violência contra a mulher entre os destaques de sua vida política - iniciada oficialmente nos anos 80.
Crédito: Leonardo Prado / Agência Câmara
Laura Carneiro
A atuação nos bastidores do Congresso para aprovação da Lei Maria da Penha é um dos feitos ressaltados para os mais de 10 mil seguidores no Instagram. Na lista também entram a autoria do Projeto de Lei 7872/2017, que prevê indenização para os filhos das vítimas de feminicídio, e outras iniciativas, como a lei que retira o poder familiar de pessoas que cometem crimes contra o pai ou a mãe de seus filhos, e o projeto - lei desde 2017 - que, nas palavras dela, “cria um sistema inédito de garantia de direitos para crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência, com o ‘depoimento especial’ e a ‘escuta especializada’, assegurando amparo aqueles que já sofreram traumas para não revivê-los”. Para a ex-deputada, os filhos das mulheres vítimas de feminicídio e de todo o processo de violência são esquecidos no Brasil.
Ela diz nesta entrevista que o Estado ainda é incapaz de atender as crianças como deveria. Observa, também, que a aplicação de medidas protetivas e o ressarcimento das vítimas ainda demanda um melhor funcionamento das máquinas estatais, ponderando que a urgência desse cenário envolve não somente novas leis e políticas públicas efetivas.
“Num país como o nosso, onde o feminicídio é uma chaga que só tem engrossado a estatística mundial”, segundo ela, “temos que ser mais assertivos, e não somente resilientes”. Laura defende como “fundamental a realização de campanhas educativas para que a população, de qualquer gênero, adquira a consciência de que a saúde física e emocional de outra pessoa, seja quem for, deve ser completamente respeitada”.
“Para mudar toda a cultura que, de alguma maneira”, frisa a ex-deputada, “institucionaliza a barbárie contra as mulheres e seus filhos no Brasil”, é essencial implementar mudanças dentro das escolas.
A seguir, a entrevista* completa.
Laura, na justificativa do PL 7872/2017, que a senhora apresentou, constam o aumento da violência contra a mulher e o fato de a Argentina ter aprovado lei para amparar os filhos das vítimas. Dados que levantei mostram que, em 2017, o ano em que a senhora apresentou esse projeto, pelo menos 1.131 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil e esse número cresceu sem parar nos anos seguintes. Apesar disso, leis para amparar os filhos delas nunca saíram do papel no país. O projeto que a senhora apresentou não avançou. Um outro surgiu em 2019 prevendo pensão para dependentes de vítimas de violência sexual e doméstica. Mas quase dois anos depois não virou realidade também. Qual é a realidade hoje?
A legislação criminal brasileira não cuida do ressarcimento das vítimas de feminicídio e da violência em geral – incluindo aqui, claro, os filhos biológicos ou adotados, ou quaisquer dependentes diretos - com a amplitude que deveria. Pagamentos para o sustento da família são respaldados pelo artigo 948 do Código Civil Brasileiro, aplicando-se aos casos de violência consumados ou tentados. Mas é o operador jurídico quem decide se e como se dará essa reparação. Ou seja, atualmente, não há garantia de que os filhos das vítimas de feminicídio e de outros crimes violentos serão indenizados. Por isso, apresentei na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 7872/2017, que foi apensado em 2017 ao PL 2575/15. Na legislatura atual, em fevereiro de 2019, outro PL, de nº 126/19, foi apensado ao meu projeto e está em tramitação.
Que cenário a senhora vê no país no momento em que isso acontece?
O Monitor da Violência – parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública – mostra que, no primeiro semestre deste ano (2020), os feminicídios corresponderam a cerca de 33% dos casos de mulheres mortas de forma violenta. Ou seja, em 67% a violência eclodiu por outros motivos. Segundo a Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, único estudo do gênero no país, feito pela Universidade Federal do Ceará e o Instituto Maria da Penha, as várias formas de violência contra a mulher atingem diretamente os filhos, seja emocionalmente, psicologicamente ou com consequências físicas. No caso da violência a doméstica, 78% das mulheres têm filhos e 83,86% deles presenciaram a violência ou sofreram suas consequências junto com a mãe. E mais: 32% das mães não denunciam o agressor por medo e/ou por não saberem se conseguirão criá-los sozinha. Então, o ressarcimento deve contemplar também as várias formas de violência que atingem os filhos nesse complexo processo de relações interpessoais.
Por que é tão difícil aprovar esse tipo de lei? Por que esses projetos não avançam apesar do cenário em que morrem brasileiras como nunca?
Com base na minha experiência parlamentar de mais de 30 anos no combate à violência contra a mulher e suas famílias, temos uma enorme dificuldade no Brasil para mudar a legislação, fazendo-a avançar com a agilidade que deveria em função das transformações comportamentais da sociedade brasileira. Primeiro, o processo de discussão e aprovação de novas leis é historicamente demorado no Parlamento nacional. Soma-se a isso o fato de que temos um Congresso majoritariamente masculino: o Brasil é o 140º no ranking mundial de representatividade feminina medido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e a União Interparlamentar, entre 193 países. E esse Congresso é o reflexo do país inteiro, ainda predominantemente patriarcal e machista, e que alimenta essa estatística absurda que confere ao Brasil o 5º lugar entre os países com maior número de feminicídios no planeta, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). Com o agravante de que 20% dos filhos de vítimas da violência doméstica, mesmo depois que suas mães são assassinadas, acabam ficando com a família do agressor. E a violência se perpetua, já que eles não têm principalmente condições econômicas para buscar outro destino. Temos que nos unir cada vez mais – o Parlamento e a população – para que os projetos sejam votados e se tornem leis. E para que essas leis, no âmbito do Judiciário, se tornem ferramentas efetivas e poderosas para punir os culpados, e para proteger e ressarcir as vítimas. Esperamos, e continuamos a lutar intensamente para que essas novas legislações se transformem em políticas públicas eficientes. Já passou da hora de o Estado brasileiro ter administrações nas três esferas que protejam as mulheres e suas famílias, em primeira instância, e que amparem de todas as formas, as vítimas diretas e/ou invisíveis da violência doméstica, dos feminicídios, de todas as formas de violência. Temos que aperfeiçoar o sistema federalista do nosso país.
E como se daria a indenização que o seu projeto propõe?
A indenização desses filhos deve ser feita em prestação mensal até que atinjam a maioridade, de forma que fiquem realmente livres de qualquer possibilidade de voltarem a sofrer violência de qualquer espécie. Só que, como ressaltamos aqui, conquistar avanços legais para proteger as mulheres e seus filhos, em qualquer situação, envolve uma luta intensa, árdua, cotidiana, no nosso país. Mesmo com o número de casos de feminicídio tendo se multiplicado nas últimas décadas no Brasil – há cerca de 20 anos, o indicador médio era de 4,1 óbitos por cada 100 mil habitantes, e em 2017 chegou a 4,7 óbitos/100 mil hab – com tendência de crescimento ainda maior neste ano de pandemia. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, somente no primeiro semestre de 2020, o número de feminicídios aumentou 1,9% em comparação a 2019, e cresceu 3,8% o número de chamadas às polícias militares em situações de agressão doméstica. Ressaltando aqui que há a tendência do aumento de subnotificações dos casos. Foi uma exceção, por exemplo, conseguir aprovar a lei que proíbe o casamento infantil no Brasil em tempo tão exíguo: apresentei o Projeto de Lei 7119 em 2017, e a Lei 13.811 foi promulgada em 2019. Por quê? Porque fizemos um trabalho incansável de convencimento, mostrando números absolutamente alarmantes: 877 mil crianças se casaram no Brasil até os 15 anos de idade, sendo 88 mil com 10 anos de idade.
Quais seriam as outras exceções?
Conseguimos outras exceções na tramitação de proposições mais avançadas para o arcabouço jurídico protetivo de mulheres e suas famílias, como a Lei 13.715/18, que retira o poder familiar sobre os filhos de agressores e abusadores, e cujo projeto apresentei no ano anterior! E ainda, para proposições que relatamos, como a Lei 13.431/17, que cria um sistema inédito de garantia de direitos para crianças e adolescentes vítimas de violência, sancionada três anos depois da apresentação do projeto original; e a Lei 13.718/18, que criminaliza a importunação sexual e torna mais rigorosas penas de outros crimes sexuais, também sancionada três anos depois da apresentação do projeto original. Ao longo de todo esse período, enfrentamos fortes resistências conservadoras para fazer avançar esse processo de aperfeiçoamento dessa legislação.
A demora na tramitação de projetos como esses se reflete em que?
Essa morosidade também se reflete na máquina pública: mesmo tratando-se da cláusula pétrea da Constituição sobre os direitos e garantias individuais, o Estado brasileiro não consegue criar uma rede para fazer a lei funcionar de acordo com as reais necessidades da nossa população. Como o ressarcimento dos filhos das vítimas de violência que deveria ser pago pelo Estado brasileiro. A aplicação de Políticas públicas “em rede” não é uma ocorrência natural no funcionamento das administrações públicas federal, estaduais ou municipais no Brasil, mesmo tendo adotado o federalismo com autonomia dos municípios desde 1988. Observo também que o ressarcimento de qualquer espécie envolve recursos financeiros do Estado e que, em casos assim, temos ainda maior dificuldade em acelerar a tramitação dos projetos específicos.
A senhora diria que os filhos das mulheres vítimas de feminicídio são esquecidos no Brasil?
Os filhos das mulheres vítimas de feminicídio e de todo o processo de violência, na grande maioria dos casos, são esquecidos no Brasil! Não só porque precisamos aperfeiçoar a legislação muito mais. E fazer aprovar os projetos em tramitação. Mas, especialmente, porque muitas das nossas leis continuam existindo apenas em teoria, pois o Estado brasileiro não está capacitado e não possui os instrumentos necessários para fazer com que sejam cumpridas. Temos que tornar realidade, no Brasil, urgentemente, que a aplicação das políticas públicas sejam consequência natural das leis em vigor. Quantas crianças assistiram a mãe ser assassinada pelo pai e receberam atendimento psicológico? Não temos esses números exatamente porque o Estado ainda é incapaz de atendê-las como deveria. A Pesquisa de Condições Socioeconômicas e Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, da Universidade Federal do Ceará e o Instituto Maria da Penha, mostra que cada mulher vítima de feminicídio deixa, em média, 2 órfãos. Em 34% dos casos, esse número sobe para 3 crianças ou mais. A estimativa é que, atualmente, existam no Brasil milhares de filhos que se tornaram órfãos pelo feminicídio e as outras formas de violência contra a mulher. E a maioria deles presenciou alguma cena de violência envolvendo os pais antes do desenlace fatal. Isso quando não foram agredidos. Assim, a Lei 13.715/18, que retira o poder familiar sobre os filhos de agressores e abusadores, foi um avanço enorme. Como a Lei 13.431/17, que protege crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violência.
“Quantas crianças assistiram a mãe ser assassinada pelo pai e receberam atendimento psicológico? Não temos esses números exatamente porque o Estado ainda é incapaz de atendê-las como deveria.”
Como a senhora analisaria a necessidade de uma lei específica em benefício dessas crianças e adolescentes hoje, passados três anos da apresentação do PL 7872/201?
É fundamental, é mais urgente do que nunca. Exatamente porque, como dissemos acima, mesmo com milhares de filhos de vítimas de violência no país, eles não têm, até hoje, a garantia de que serão ressarcidos pelo Estado brasileiro para que, mesmo sem os pais, sejam cuidados para ultrapassar os traumas e conseguirem ter a chance de construírem novas vidas mais inteiras. Considero ainda que esse ressarcimento deve ser garantido não só aos filhos das vítimas de feminicídio, mas a todos os filhos da violência que não têm condições de seguirem seus novos caminhos sem o devido amparo econômico, psicológico, social. Ou seja: qual será o futuro de uma criança que é espancada continuamente? O Estado tem que se responsabilizar e sustentar esse ser para que tenha alguma possibilidade de um futuro melhor.
Argentina, Peru e Itália têm decretos e leis em apoio a essas crianças, adolescentes e jovens. No Brasil, onde a taxa de mortes por 100 mil mulheres chega a ser quase 12% maior, por que essas pessoas estão invisíveis? Fora da pauta?
Primeiro, temos que analisar a cultura comportamental do Brasil e desses outros países. Aqui, há uma espécie de contemporização sobre os atos dos homens em relação às mulheres, como se determinadas ações violentas tivessem algum tipo de justificativa, o que é completamente absurdo. Mas é uma visão que ainda vigora em parte da sociedade brasileira. Como nos referimos acima, a sociedade deve exercer seu papel nesse processo, como protetora das mulheres e seus filhos, porém, nem sempre isso acontece. Ao mesmo tempo, identificamos situações parecidas no Brasil, na Argentina e no Peru. Mesmo quando há uma lei mais aperfeiçoada – e a nossa 13.431/17 é considerada uma das mais amplas no mundo para proteger crianças e adolescentes vítimas e testemunhas de violências – a verdadeira Justiça ainda está longe de ser aplicada em favor de mulheres e suas famílias em qualquer desses países. Socialmente, a violência doméstica é rechaçada por todos, mas a aplicação de medidas protetivas e o ressarcimento das vítimas ainda demanda um melhor funcionamento das máquinas estatais, em consonância com o espectro legal de cada nação.
A senhora destacaria algum desses países como principal modelo a seguir?
Considero a situação da Itália mais avançada nesse momento. A nova lei italiana de combate à violência contra mulher, aprovada no ano passado (2019), prevê prisão perpétua para os condenados por feminicídio. A Itália foi o quinto signatário da Convenção de Istambul, do Conselho da Europa para prevenção e combate à violência contra a mulher. E desenvolve boas políticas públicas, incluindo o ressarcimento econômico das vítimas e seus filhos.
O que a senhora apontaria como urgente considerando a realidade brasileira?
A urgência envolve não somente novas leis e novas políticas públicas efetivas. Num país como o nosso, onde o feminicídio é uma chaga que só tem engrossado a estatística mundial, temos que ser mais assertivos, e não somente resilientes. É fundamental realizar campanhas educativas para que a população, de qualquer gênero, adquira a consciência de que a saúde física e emocional de outra pessoa, seja quem for, deve ser completamente respeitada. De que qualquer vida deve ser respeitada! De que as crianças nasceram para serem cuidadas, protegidas – elas devem brincar e estudar, e jamais serem maltratadas de qualquer forma. Para mudar toda a cultura que, de alguma maneira, institucionaliza a barbárie contra as mulheres e seus filhos no Brasil, é fundamental modificar os currículos escolares. O respeito às mulheres, às crianças, a todos os gêneros, deve ser profundamente alimentado nas escolas. Afinal, quando os pais faltam, por qualquer motivo; quando o resto da família falta, por qualquer motivo; o suporte da escola pode fazer enorme diferença, até no atendimento psicológico, lembrando que a revitimização também ocorre ainda nas instâncias de controle social, como a polícia e o Judiciário, mesmo com as novas leis em vigor. Para realmente construirmos um futuro civilizatório, os filhos da violência, seja de que tipo for, têm que contar com uma estrutura vigorosa e muito eficiente nas redes municipal, estadual e federal do Estado brasileiro, que os amparem na dor - com apoio psicológico, emocional, de Saúde – e que os apoiem financeiramente para poderem virar a página das sequelas e dos traumas e reiniciarem suas vidas com todas as condições de assistência e dignidade.
*Entrevista concedida em 24/11/2020, por WhatsApp.
Sementes de mudança
Ouvir o que os filhos das mulheres vítimas de feminicídio têm a dizer - e também o que sentem e do que precisam - é uma das estratégias mais importantes para ajudá-los a lidar com a perda da mãe, diz a professora Maria Julia Kovács, do Instituto de Psicologia da USP. Ela cita o apoio psicossocial como elemento chave nesses casos e destaca o importante - mas ainda incipiente - papel das escolas nesse processo.
“Crianças enlutadas precisam de acolhimento e cuidado e como permanecem muitas horas na escola é fundamental que possam ter esse cuidado (no local), com escuta e acolhida de sentimentos”.
As crianças, observa ela, podem manifestar dificuldades nas atividades pedagógicas, comportamento agressivo ou de isolamento e precisam ser cuidadas nesses aspectos. “Ignorar essa situação ou ainda ter exigências desmedidas podem causar ainda mais sofrimento”.
Crédito: Rawpixel Ltd.
Segundo especialistas, escola tem papel fundamental no acolhimento de crianças enlutadas e na difusão de informações sobre machismo e outras relevantes para coibir violência doméstica
Escolas no Brasil, de acordo com a análise da professora, não abordam o tema “morte” de forma adequada e os educadores não estão preparados para lidar com o assunto. Em pesquisa realizada há cinco anos, ela verificou que as escolas brasileiras não incluíam na programação atividades para cuidar de crianças e jovens que perderam pessoas significativas. “Em alguns casos nem sabiam que a criança estava enlutada, não eram informadas”, observa Kovács, acrescentando não ter conhecimento de políticas públicas sobre o cuidado ao luto de crianças que assistem cenas de violência doméstica.
Estimar quais seriam as possíveis consequências caso não seja oferecido apoio adequado às crianças é difícil, segundo a professora. “Mas possivelmente essa criança se sentirá sozinha, desamparada, descuidada. Poderá desenvolver problemas somáticos, pode adoecer, pode desejar morrer também. Pode sentir pânico, com medo de que possa acontecer com ela o mesmo. Mas, são hipóteses. Pode ser que nada disso aconteça. Cada caso tem suas peculiaridades e é importante acompanhar o processo de cada um”.
O poder da escola
Não é só em relação ao processo de luto que o papel da escola seria fundamental no contexto dos feminicídios. A sala de aula, segundo especialistas, é cenário imprescindível para fomentar a educação sobre temas como direitos das mulheres, machismo e feminismo - discussões consideradas chaves para que o país plante sementes de mudança. A realização de palestras, de grupos de reflexão e de campanhas para disseminação desses conhecimentos - vistos como capazes de mediar a formação humana das crianças - estão entre as estratégias que listam como possíveis Brasil afora.
“Por ser um crime de violência baseado por questões de gênero, por ser um crime que tem raízes culturais muito fortes, você só vai conseguir mudar a cultura se você falar sobre isso.” - Juliana Martins, Fórum Brasileiro de Segurança Pública
“Por ser um crime de violência baseado por questões de gênero, por ser um crime que tem raízes culturais muito fortes, você só vai conseguir mudar a cultura se você falar sobre isso. Se você trouxer a questão, se você puder discutir, discutir o que é papel de homem, o que é papel de mulher. Se você puder trazer essa discussão tanto pra escola quanto para a família”, observa Juliana Martins, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
“Fazer isso em escolas, com meninos e meninas”, mas também em “locais de trabalho, clubes de mães, fábricas, faculdades” é uma intervenção que a promotora de Justiça do Ministério Público do Rio Grande do Norte, Érica Canuto, também avalia como imprescindível. Os resultados, segundo ela, viriam a longo prazo, capazes de atingir pessoas, modificar padrões sócio-culturais, estereótipos de gêneros e de impulsionar outro tipo de estatística. Estatísticas como as que ela própria tem ajudado o estado a atingir.
O machismo em discussão
A promotora está a frente do projeto “Grupo reflexivo de homens” no Ministério Público do Rio Grande do Norte, que reúne homens em processo judicial e envolvidos em contexto de violência doméstica e familiar para discutir questões como masculinidade, papeis de gênero, Lei Maria da Penha, comportamento sexual de risco, abuso, estupro, paternidade e machismo.
“Nenhum homem que já participou do grupo voltou a praticar crime de violência contra a mulher”, diz a promotora. “Eles participam de 10 encontros, de duas horas. fazemos perguntas reflexivas. Eles começam a pensar a respeito, discutem, discutem e começam a refletir. Isso mexe com a crença”.
O projeto existe desde 2012, inspirou a criação de outros no Brasil e foi o ponto de partida para um projeto que altera a Lei Maria da Penha, estabelecendo como medida protetiva de urgência a obrigatoriedade de o agressor frequentar centros de educação e reabilitação, além de ter acompanhamento psicossocial.
“Ninguém nasce violento. O homem não nasce violento, nem a mulher nasceu para apanhar ou nasceu vítima. Mas a gente aprende. A gente é socializado nesses padrões que menino pode isso, que menina pode aquilo. Ou seja, existe todo um dispositivo que naturaliza essa forma violenta de agir e esse espaço do grupo é um espaço de vivência e de reflexão sobre esse lugar que é ser homem, sobre o que é ser mulher, sobre o que lhe diferencia”, diz Érica.
“A gente tenta disseminar isso, mas é uma sementinha aqui e uma ali quando deveria ser uma política pública”, acrescenta. “Gênero é para ser discutido dentro de escola, toda hora, sempre”.
Sobre a reportagem
Ninguém sabe ao certo quantos órfãos os feminicídios têm deixado no Brasil. Mas a necessidade de intervenções não só para prevenir esses crimes, como também para oferecer suporte e tratamento adequado a quem fica quando eles acontecem, é apontada como urgente por todos os especialistas e vítimas entrevistados nesta reportagem. Dados relativos à existência dos filhos e ao calvário que enfrentam não são fáceis de encontrar e este foi um dos principais desafios na realização da pauta.
O trabalho, fruto da dissertação de mestrado da jornalista potiguar Renata Moura, tem orientação do jornalista investigativo britânico Iain Overton e foi aprovado em fevereiro de 2021 pela Birkbeck University of London, após aproximadamente 2 anos de levantamento e análise de dados e entrevistas.
Entre as questões que nortearam a pauta estão “Quais são os impactos de curto e longo prazo dos feminicídios? Há alguma evidência de que crianças com mães assassinadas são mais propensas a ter depressão ou de se envolverem com violência? Há alguma evidência de que essa violência pode contaminar gerações? Estaria a sociedade fazendo o escrutínio da situação de forma adequada? O que essa violência pode fazer com a mente de jovens homens e mulheres? O Estado está falhando no apoio a essas crianças? e como parar o ciclo da violência?”.
Overton foi repórter da BBC, colunista do The Guardian e atualmente dirige a organização Action on Armed Violence, que está baseada no Reino Unido e busca reduzir o impacto da violência armada por meio de monitoramento e pesquisa das causas e consequências desse tipo de violência. O jornalista é autor do livro “Gun Baby Gun”, que abre com a história de uma mulher assassinada a tiros em São Paulo, na frente do filho.
Crédito: Renata Moura
Imagem mostra parte de uma das salas de aula da Birkbeck University of London: reportagem foi trabalho final do mestrado em Jornalismo Investigativo da Universidade
A investigação orientada por ele e conduzida como projeto final do mestrado em jornalismo investigativo da Birkbeck incluiu dezenas de pedidos de dados via Lei de Acesso à Informação (LAI), a secretarias de segurança pública, de justiça e cidadania, bem como a Ministérios e outros órgãos ligados a governos estaduais e ao federal. Esses pedidos começaram em 2019. Na época, eram raros os estados com bases de dados públicas sobre o tema. Hoje, a maioria apresenta informações em sites oficiais - sobre as mulheres, e não sobre os filhos. Os levantamentos realizados foram envoltos em vários desafios, entre eles estados que chegavam a demorar meses para compartilhar as informações solicitadas, em vez dos 20 dias de prazo previstos na lei. A escassez de números oficiais foi outra barreira.
Um caso emblemático nesse contexto despontou no estado do Espírito Santo. A um pedido da reportagem realizado em 2020 sobre quantos presos passaram pelo sistema carcerário acusados de feminicídio e sobre se na infância eles teriam presenciado violência doméstica, a Secretaria para Assuntos do Sistema Penal alegou ausência das informações e afirmou que os questionamentos eram "altamente desarrazoados". "Isto porque a diretoria jurídica do sistema penal não possui dados específicos de pessoas que entraram no sistema pelo crime de feminicídio, o que torna impossível fornecer as informações solicitadas, sem, com isso, direcionar demasiados recursos humanos e, por conseguinte, acarretar embaraços ao andamento dos trabalhos essenciais desenvolvidos por esta secretaria. Outrossim, o solicitante requer dados desde o ano 2015 - ano em que a lei dos feminicídios foi aprovada - o que, sequer, possuímos digitalmente." O trabalho de apuração não ficou restrito, porém, somente à LAI. Envolveu ainda entrevistas diretas, aplicação de questionários, levantamento e análise de documentos judiciais, e de informações publicadas na mídia e nas redes sociais das vítimas.
O objetivo no início do trabalho era levantar dados sobre as mulheres, se elas tinham filhos e se eles testemunharam o assassinato.
Principal caso
Durante a investigação, São Paulo despontou como estado com a maior disponibilidade de registros sobre homicídios e feminicídios, assim como o que ofereceu respostas mais detalhadas via Lei de Acesso à Informação sobre os crimes, possibilitando cruzamentos de dados que levaram a conclusões sobre a existência ou não de filhos das vítimas em mais de 600 casos.
Apesar de não ser o epicentro dos feminicídios no país, apenas em 2018 o número de mulheres assassinadas por parceiros, ex-parceiros ou membros da família no estado foi maior que o total de mulheres assassinadas por homens no Reino Unido inteiro em igual período, de acordo com o Femicide Census, um censo que mostra o panorama dos casos no país europeu. A taxa de feminicídios por 100 mil mulheres em São Paulo foi 58% mais alta que a do Reino Unido no ano analisado. Além disso, o número mínimo de casos estimados neste trabalho em que crianças testemunharam feminicídios no estado, foi, nos últimos cinco anos, 15,71% maior que o total registrado no Reino Unido em uma década - de 2009 a 2018 - quando, segundo a versão mais recente do Censo, publicada em novembro de 2020, “em 70 casos crianças viram o feminicídio, de forma mais frequente, o assassinato da própria mãe”.
Os dados da reportagem foram inicialmente coletados via Lei de Acesso à Informação e usados para mapear reportagens sobre feminicídios, onde nomes de acusados e outras informações puderam ser identificados permitindo a localização de documentos judiciais e perfis nas redes sociais que possibilitam identificar com clareza a existência ou não desses filhos.
Crianças e adolescentes não foram entrevistados nem contactados. A lista de fontes na pauta inclui adultos cujas mães foram vítimas de feminicídio e que falam abertamente sobre os casos nas redes sociais, outros familiares e mulheres que sobreviveram a tentativas de feminicídio encontrados por meio de questionários públicos, de assistentes sociais e defensorias públicas. Todos eles receberam informações prévias sobre perguntas que seriam feitas, o conteúdo possível como resultado e possíveis repercussões a partir da publicação do material. Parte dos que foram contactados aceitou contar suas histórias, alguns deles, na condição de anonimato.
Familiares e cuidadores de crianças em 16 casos encontrados em São Paulo foram procurados, mas apenas dois retornaram ao pedido de entrevista e responderam a questões formuladas em um questionário.
A investigação tem como público-alvo pessoas que têm a intenção de ferir ou de matar uma mulher e que, ao ler a reportagem, podem desistir da ideia. Foca igualmente em famílias que podem estar ignorando a necessidade de afeto e cuidados às crianças que perderam as mães, em formuladores de políticas públicas e leis que, segundo especialistas na área, estão ignorando o problema, assim como em qualquer pessoa que ao saber como a violência afeta essas crianças aja para ajudar a protegê-las e a lidar com o sofrimento que enfrentam. A investigação é dedicada à Gerlândia, Silvana e a milhares de mulheres mortas nos últimos anos por serem mulheres, assim como aos filhos que elas geraram. Emanuel, um desses filhos, repetiu nos últimos meses como um mantra que “ninguém se lembra dos filhos”. Mas que eles existem. Em uma das conversas que envolveram a reportagem, ele soube que o avô de uma criança questionou: “O que adianta contar essas histórias?” e pediu: “Não desista das nossas histórias. Você vai ser a nossa voz”.
*Renata Moura é jornalista formada pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Foi repórter da BBC News Brasil em Londres, repórter e editora da Tribuna do Norte.